A Taisa Sousa contactou-me pelo facebook, ainda vivia eu em São Paulo, a perguntar se eu estaria interessado em fazer uma sessão de grupo. Expliquei-lhe que o conceito do Loove era contar histórias individuais de amamentação, assumindo as dificuldades que o processo poderia ter, relatar os momentos menos bons e as alegrias. Queríamos informar, sensibilizar, documentar. Para mim, o desafio era conseguir retratos intensos e verdadeiros, captar a essência da intimidade criada entre mãe e filho na amamentação, cruzando-o com o conflito do espaço público, onde a aceitação social da amamentação nem sempre existe. A Catarina ficava com a missão de recolher os pedaços de histórias das mães e redigir o texto que passasse a história. Por isto tudo, não estava muito interessado numa sessão de grupo.
A Taisa explicou-me que o objectivo da sessão de grupo era celebrar o progresso de mães negras poderem amamentar os seus filhos em liberdade, num país onde as cicatrizes da escravatura são ainda muito visíveis na sociedade. Convenceu-me facilmente.
Deixo-vos os textos de três das mães.
Tiago
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Meu Filho, dorme, dorme o sono eterno No berço imenso, que se chama – o céu. Pede às estrelas um olhar materno, Um seio quente, como o seio meu. (trecho do poema de Castro Alves, Mater Dolorosa)
Numa tarde de domingo, sob o céu nublado da cidade de São Paulo, as mães, Ana Paula, Érica, Mafoane, Priscila, Taisa e Viviane se reuniram a pousar para uma sessão de fotos com seus filhos junto ao monumento Mãe Preta e a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Um céu que era cinza se coloriu, além de arrancar sorrisos e abrilhantar olhares de quem por ali passava e via a cena sensível dessas mulheres em celebração de amor, amamentando seus bebês.
Essas mulheres não tem apenas a cor da pele e a maternidade em comum, são militantes que lutam contra o preconceito racial e que através da maternidade viram a oportunidade de realizar uma singela homenagem às ancestrais escravizadas impedidas gestar, parir e cuidar de seus filhos.
Tive o privilégio de receber o convite da queridissima Taisa para as fotos no Loove e não pensei duas vezes: com as fotos, compreendi a possibilidade de homenagear mulheres escravizadas impedidas de viver a maternidade, conforme objetivo principal proposto pela Taisa, como também de indiretamente apoiar mulheres que já amamentam, mas principalmente incentivar as que nunca puderam por medo, vergonha, dor, falta de informação, informação errônea, ou até por não querer mesmo.
A amamentação não exige da puerpéria apenas leite e o bico do peito protuberante e saudável, exige em si doação mais que instintiva, coragem, afeto, respeito, um parto mais humano, enfim um conjunto de fatores que muitas vezes foi arrancado de uma mulher recém parida.
Essas mulheres, muitas vezes possuem o que chamo de distração da dor, e nessas distrações vão se acumulando dor, tristeza, revolta, uma não paz que se torna humanamente impossível amamentar… Afinal, amamentar é doar, e como é doar o que não se tem? É pensando nessas mulheres a minha motivação para as fotos.
Viviane Silva
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Ancestralidade e Maternidade.
Com a chegada da maternidade, repensei toda minha trajetória. Pensei na vida e em tudo o que deveria entrar em ordem para a chegada de Zahra Mahin, filha minha e de Danilo Alberto, nosso querido e pequeno tesouro da Oxum.
Pensei na minha trajetória como filha até aqui, e no que deveria mudar daqui para frente, conversei com minha mãe e tia para saber detalhes de quando se tornaram mães, como foi minha chegada, até quando mamei, por que parei, quando comecei a comer, se chorava muito, enfim, as alegrias, preocupações e ansiedades que enfrentaram com a chegada da maternidade, me emocionei. Sempre soube que a vida delas não havia sido fácil, as histórias de dificuldades foram diversas. Conversei com minha sogra, amigas, vizinhas, conhecidas e desconhecidas que já pariram, ouvi suas histórias, quase todas com casos de superações físicas e psicológicas, fiquei feliz em saber que minha filha nasceria em condições melhores que as minhas e a de seu pai.
Pensei nas minhas avós e em todas as outras mulheres que me antecederam, pensei nas mulheres negras, pensei também nas mães escravizadas. Pensei e senti. Quanto lamento, quanta dor. Não puderam gestar, ter, cuidar e criar seus filhos, tampouco cantar, cheirar, afagar nos braços. Não puderam amamentar e nem nina-los porque sua própria vida não lhes pertencia.
O tempo passou, as lutas persistem e, aos poucos, com muita insistência e suor, vão virando conquistas, a dor , aos poucos, vai virando alegria. Nossos filhos e filhas nasceram libertos.
Em homenagem a essas mães, nós, mulheres negras, militantes e mães, vamos amamentar nossas crias, vamos homenagear aquelas mães que tiveram suas vidas e a maternidade arrancadas. Vamos amamentar para alimentar e nutrir de carinho e afeto e vamos cerrar nossos punhos para demonstrar que não esquecemos e continuaremos a lutar.
O local na cidade de São Paulo escolhido e mais significativo para a homenagem foi o monumento à Mãe Preta, que fica ao lado da Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos, um lugar que simboliza a história de resistência do nosso povo.
Taisa Santos
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Ancestralidade e Maternidade.
Como mulher, mãe e negra permear pela amamentação nos religa a universos que transgridem a fronteira entre a fêmea e a nutrição de sua cria. Ser mãe preta em um mundo de tantas dores, causadas pelo racismo, como o nosso, é assustador, deslumbrante e esperançoso.
Não vamos cair na armadilha de discutir sua existência. Sabemos o legado que a escravidão nos deixou, aprendemos, desde pequeninas, o quão difícil e ser mulher, negra e periférica, tendo o exemplo das nossas mães, que, como nossas avós, muitas vezes, não puderam desfrutar da carícia, do afeto de suprir-nos com o seio arfando em leite.
Como amamentar depois de um dia extenuante de trabalho? Como nos acolher ao seio preto depois do corte da cana, da faxina nas privadas, do pilar da mandioca, do tapa na cara, do pano úmido passado em toda sala, do ferro quente, do estupro, da humilhação? Como nos levar ao seio preto depois de tantas dores?
Como mães tememos pelos nossos filhos, temos medo que se resfriem, da impotência diante do choro agonizante das cólicas, das noites febris, que sintam frio. Mas como negras tememos ainda mais pelos nossos filhos. Tememos que desvalorize a textura de seus cabelos, que riem do formato do seu nariz, que aponte a tonalidade de sua pele. E nos assustamos por que sabemos das lágrimas e feridas que irrompem em nossa subjetividade por conta do racismo e suas lástimas.
Mas ao mesmo tempo que assusta, deslumbra! Ficamos deslumbradas como ser mãe pode nos revelar rastros de nossa ancestralidade africana. Nos deslumbramos com os saberes do gerar que nossas velhas pretas manuseiam tão bem. Quando dizem que é menina pelo formato da barriga ou mesmo quando sabem que já estamos grávidas, ainda que nem nos demos conta do atraso de nossa menstruação.
São tantos saberes repassados, reelaborados e revividos… A faixa ao redor do umbigo, uma cantiga de ninar que acalma ou mesmo palavras sagradas sussurradas em seus pequenos ouvidos, acompanhados por gestos e plantas que irão proteger ou lhe curar. É deslumbrante quando nossas velhas pretas olham para nossas barrigas e dizem:” – Barriga baixa, já tá nos dias…”. Elas sabem o que dizem!
E quando parimos, nos enchemos de esperança! Esperança de que, talvez, agora podemos resignificar saberes e sabores maternos negros. Caminhamos no sentido de construir um espaço onde o diálogo entre culturas possa florescer outras possibilidades de convivência no mundo, compreendemos a amamentação como um ato de amor-político redimensionando-a na esfera da luta anti-racista, compreendendo-a e convidando a ser compreendida como um ato de re-existência e luta de amor pelo peito preto e o seu bebe.
Priscila Dias Carlos
Mãe solteira de Kadu, 9 e Madalena, 2. Mestre em Historia Social e professora do Estado na periferia da Zona Sul.