Thaís confessa que, nisto de ser mãe pela primeira vez, a amamentação foi o principal desafio. Apesar do seu desejo imenso de amamentar, assim como ter um parto natural.
Primeiro veio a pressão de todas as mudanças. E apesar de sentir o peito cheio de leite, não saía nem uma gota. Depois Thais diz que sofreu “repressão, assédio, ciúmes, torcida de nariz”. Amamentar o seu primeiro filho tornou-se um conjunto de medos: o “medo de não poder amamentar, as críticas sobre a perda de peso dele, ter de complementar com leite artificial”.
Depois, com apoio e serenidade, Thaís voltou a amamentar Heitor, um bebé de oito meses, “alegre, enérgico e de uma combinação de olhar e sorriso lindos”.
Thaís descreve o filho com uma imensa doçura. A mesma com que fala da relação com o pai de Heitor, Terra, que terminou três meses depois da materialização desta história de amor. “Fui muito feliz. Amei, fui muito amada e não quero dar nomes ao que vivi, só sentindo.”
Assim como “só sentindo” se compreende a amamentação como um acto de amor, de organização mental do bebé, de conforto e de contacto . Amamentar é isso: olhar e pele.
Catarina Beato
2 de Novembro de 2013
A Thais chegou-me pela caixa de mensagens da minha página de fotografia, seguindo o apelo do Loove, com a ajuda de divulgação da Leticia, para mais sessões em São Paulo. E, contrariamente ao que possa parecer, pelo resultado final, a sessão da Thais não foi fácil. Pelo facebook, começámos a discussão de ideias sobre a sessão, sobre o amamentar em espaço público, uma tentativa de comunhão de expectativas e imagens mentais, e a sugestão do local para a sessão, o museu da Pinacoteca.
Sexta-feira na Pinacoteca, 13h. Cheguei pontualmente. Recebo uma mensagem da Thais. Está atrasada. Em São Paulo, com as distâncias, um atraso pode ser de 20 minutos ou de uma hora e 20 minutos. A minha impaciência com atrasos está cada vez mais vencida e aniquilada. Mais tolerante e tranquila, prefiro pensar assim. Respondo com sinceridade, “Não faz mal, assim tenho tempo de conhecer o museu e ir adiantando trabalho”. Percorri todas as salas e galerias, vi os quadros e esculturas, antecipando mentalmente a sessão.
A Thais chegou enfim, com um sorriso desarmante e o Heitor enrolado num sling. Mostro-lhes os quadros, mas já sem conseguir perceber porque os procurei e que sentido faziam naquela sessão. Sentámo-nos num banco. Disparo algumas vezes. Funciona parcialmente, sinto muita dificuldade em pensar na geometria do espaço. Culpa minha. Cansaço. Peço-lhe desculpa e pergunto se podemos repetir a sessão no dia seguinte, de manhã. Sinto conforto na compreensão da Thais. Os caminhos de regresso coincidem no metrô, que se apanha na estação da Luz, em frente à Pinacoteca. Ao entrar na gare onde passam os trens apercebemo-nos ao mesmo tempo que preferimos aquele cenário para a sessão em vez do museu.
Sábado de manhã. Mal dormido de um jantar/reunião da véspera, atraso-me para o encontro, às 10h, na Estação da Luz. Envio mensagem e a Thais responde-me como respondi na véspera: “Não faz mal, assim aproveito para comer qualquer coisa aqui perto.” Chego ao ponto combinado, ligo à Thais e não atende. Insisto, em vão. Os telemóveis às vezes tocam baixinho e os cafés são normalmente barulhentos. Deambulo pelos cais, passadiços, corredores, a estudar o edifício como fizera com a Pinacoteca. Atravesso-a e saio do lado da Rua Mauá. Toda a atenção da rua se concentra no outro passeio, à porta de um hotel de esquina. Quatro polícias intervêm numa discussão entre uma mulher exaltadíssima e um velho. A mulher veste um vestido cor-de- rosa justo, e saltos altos, pontiagudos. O velho olha para tudo o que se passa com a indiferença de quem sabe que está demasiado próximo da morte para se chatear com novelas de má qualidade. Do lado de cá da rua, na parede do edifício da estação, encostam-se vários homens. Pergunto o que se passa. Parece que o velho quis pegar o travesti para um programa e não tinha como pagar, respondem. O polícia está de pistola na mão, oscilando-a para todos os lados, conforme vai falando para tentar serenar os ânimos do travesti de voz cada vez mais grave. A irritação fê-lo perder a feminilidade postiça, grita que o velho a enganou, esbraceja para as escadas íngremes do hotel, para o polícia, exigindo-lhe que obrigue o cliente em falta a pagar o serviço, e para o velho, a quem, ao aperceber-se da ineficácia dos seus protestos, estatela uma chapada de mão aberta que o atira contra a parede. Os polícias juntam-se, mais pistolas nas mãos. Volto a perguntar, mas é preciso pistola para resolver uma questão destas? Nossa, responde o homem, isto aqui é tudo gente perigosa. Olho para ele, sem entender se se incluía no grupo ou se tinha apenas curiosidade por estas coisas da vida. Estamos na fronteira da Cracolândia, uma zona onde se concentram os dependentes de crack, a mais rápida, barata e violenta de todas as drogas. Uma zona da cidade onde ninguém é aconselhado passar. Eles não têm nada a perder, nem as roupas rasgadas que vestem, tiram qualquer coisa de você, diz-me.
O movimento tipo ‘screen saver’ das pistolas nas mãos dos polícias afasta-me do local, por precaução, não vá um indicador apertar-se por descuido e uma bala sair da câmara e finalizar-me prematuramente. Observo as pessoas em volta. Todas se detêm na discussão. À porta da estação estão duas mulheres de meia idade vestindo calças de licra justas, de cores berrantes. Uma delas pergunta-me se vamos. Digo que não, de olhar fugidio e envergonhado. A segunda vai ter com outro velho, pega-lhe na mão. Ele não mostra grande entusiasmo. A mulher puxa-o, quer atravessar a rua. Me paga uma cachaça, homem!, insiste. O velho não sai do lugar. Não consigo perceber se por falta de vontade, se por pressentir que será impossível dar dois passos sem se esborrachar no chão.
Ligo novamente à Thais. Se calhar não foi boa ideia termos combinado neste local. Atende, está a chegar. Volto a entrar na estação. Reparo agora que a prostituição também se faz nos corredores e passadiços que atravessam as linhas donde chegam os comboios. Tenho a 5D e três lentes dentro da mochila. Às vezes, se calhar é loucura – é mesmo, dizem-me os amigos de São Paulo -, sinto-me imune aos perigos da cidade, como se algo transcendente me velasse. É isso que me faz andar de máquina na mão nas ruas de Maputo, Benguela, Rio de Janeiro ou São Paulo. A Thais e o Heitor chegam e começamos a sessão. O contraste é brutal. Parecem anjos pairando sobre a estação. Aquele abraço quente, protector, no pequeno corpo do Heitor, dado pelo corpo pequeno da Thais, tornam-se fortes e imunes a tudo, com tanta energia que irradiam juntos. Como se estivessem noutra frequência de tempo, noutra vibração cósmica, noutra dimensão, invisíveis ao exterior. Aquela união, da amamentação do Heitor, da entrega da Thais, tão doce, tão terna, indiferente à dureza e crueldade do que se passa dez metros ao lado, é a verdadeira e mais intensa transcendência da vida, incomparavelmente mais intensa que a aura que protege a minha 5D. Não sei o que isso é, mas observo-a tão fascinado como me provocam curiosidade os caminhos erráticos do homem. Como no Minhocão, com a Billa, vejo o conflito e a dualidade, os opostos no mesmo lugar. Eros e Thanatos.
Tiago Figueiredo
6 Novembro de 2013